O governo angolano justificou a nova divisão político-administrativa como uma necessidade de organizar o território e atender às necessidades das populações. Mas na verdade, a acção tem também um impacto eleitoral que favorecerá os próprios interesses do executivo e do partido no poder. Na política e nos meios académicos, esta engenharia eleitoral é conhecida por gerrymandering e tem já alguma tradição em Angola.
Em Agosto deste ano, a Assembleia Nacional aprovou a Proposta de Lei de Divisão Político-Administrativa (DPA), que dividiu em dois as províncias de Luanda, Moxico e Cuando-Cubango, criando três mais: Icolo e Bengo, Cassai-Zambeze e Cuando. Angola passará agora a ter 21 províncias, 326 municípios e 378 comunas.
De acordo com o Executivo no artigo “Nova Divisão Político-Administrativa em abordagem no Café CIPRA”, publicado no portal do Governo, a DPA de 2024 tem o objectivo de “melhorar a gestão de cada divisão territorial, aproximar os serviços públicos aos cidadãos, reduzir as assimetrias e fazer uma distribuição equilibrada da riqueza pública, dando uma resposta mais adequada e célere às necessidades das populações, [para além de] ter em consideração as especificidades culturais, sociais, económicas e demográficas de cada área do país”.
A posição do Executivo à volta da DPA inclui dois tipos comuns de justificações administrativas e políticas com que o poder político moderno procura dissimular, de alguma forma, uma dimensão discricionária. Por um lado, indica a necessidade de realizar a vontade dos cidadãos, optando por isso, pela auscultação dos mesmos; por outro, cumpre a necessidade de realizar as tarefas do Estado, através da materialização do programa eleitoral dos partidos. Estes argumentos procuram fundamentar as propostas de lei apresentadas ao parlamento, ou perante o escrutínio público.
Engenharia Eleitoral
Conforme indicado na introdução deste ensaio, a justificação de uma acção política com recurso aos instrumentos supracitados serve apenas para disfarçar a natureza discricionária do poder político. Porque o único impedimento efectivo de realização de divisões político-administrativas na realidade angolana, com efeito na dimensão eleitoral dos círculos eleitorais de maior representação eleitoral, e também com a possibilidade de provocar um espartilhamento territorial de um Estado unitário, só poderá acontecer por iniciativa do Tribunal Constitucional de Angola (TCA).
Defendemos na nossa obra Sistema Eleitoral Angolano e Eleições em Contexto de Pós-Guerra: Um Estudo das Eleições de 2008, 2012 e 2017, que a Constituição da República de Angola (CRA) de 2010 não impede o Titular do Poder Executivo (TPE), neste caso o Presidente da República, de propor novas divisões político-administrativas, ficando-lhe apenas vedada a possibilidade de alterar a magnitude dos círculos nacional ou provincial (art.º 144.º, n.º 2, alínea a) e b) da CRA de 2010, segundo o qual, para a eleição dos deputados pelos círculos eleitorais, 130 deputados são eleitos no círculo nacional e 5 deputados são eleitos em cada província).
Esta disposição constitucional obriga, como tal, à conservação da magnitude dos círculos angolanos. No entanto, em si é insuficiente para assegurar a manutenção das actuais 18 províncias. Nesta medida, o TPE poderá propor novas divisões administrativas que podem desencadear vários processos de engenharia eleitoral, como a transferência de cidadãos de um círculo para o outro, como já aconteceu, em 2011, com a nova Divisão Administrativa de Luanda e do Bengo, através da Lei n.º 29/11. Na prática, esta reconfiguração representou um aumento do peso do voto do Bengo, actualmente um círculo mais pequeno em termos populacionais; e no sentido contrário, derivado de uma perda de população, induziu a diminuição de peso do voto de Luanda, província onde os resultados nas últimas eleições foram pouco favoráveis ao partido no poder.
Importa referir que, no caso do sistema eleitoral angolano, a possibilidade de criação de novas províncias só se tornou viável com a entrada em vigor da CRA de 2010, porque houve uma supressão intencional do número total de deputados, que era de 223 (130 do círculo nacional, 90 dos círculos provinciais e 3 dos círculos do exterior), de acordo com o artigo 79.º, n.º 1 da Lei Constitucional de 1992. O n.º 1 do artigo 79.º, que estabelecia um número fixo de deputados no parlamento angolano, foi suprimido, tal como os círculos no exterior. Por efeito, qualquer divisão administrativa com a criação ou diminuição no número de províncias gerará um impacto no número de deputados – como se verá já com a nova DPA em vigor, com a qual a Assembleia Nacional passa de 220 para 235 deputados: 130 do círculo nacional e 105 pelos círculos provinciais (5 por cada uma das 21 províncias, incluindo as recém-criadas).
Esta reengenharia, com a redistribuição dos pesos de voto de cada província, representará indubitavelmente uma diminuição do peso eleitoral de Luanda no contexto geral e a transferência de votantes com impacto na proporcionalidade eleitoral, configurando uma prática clássica de gerrymandering.
Este termo nasceu nos Estados Unidos, onde o redesenho dos círculos eleitorais para favorecer um partido político tem influenciado os resultados das eleições. Segundo instituições como o Brennan Center for Justice (BCJ), este processo “é profundamente antidemocrático” já que pode produzir “resultados eleitorais diferentes das preferências dos eleitores”. Denuncia o BCJ: “Em vez dos eleitores escolherem os seus representantes, a manipulação permite aos políticos escolherem os seus eleitores. Isto tende a ocorrer especialmente quando a definição de limites é deixada para as legislaturas e um partido político controla o processo (…). Quando isso acontece, as preocupações partidárias quase invariavelmente têm prevalência. Isso produz mapas onde os resultados eleitorais são praticamente garantidos, inclusivamente em anos eleitorais menos bons para o partido em causa”.
Projecção do impacto da DPA de 2024 nas eleições de 2027
A DPA de 2024 terá um impacto directo na capacidade de eleição dos deputados nos círculos eleitorais em 2027. Destacamos, por exemplo, o círculo eleitoral de Luanda que elegeu, em 2022, 47 deputados (42 no círculo nacional e 5 no círculo provincial) através de 4 milhões 670 mil 797 votos válidos, que corresponderam a 32,44% das votações. No entanto, em termos representativos, 47 deputados num parlamento constituído por 220 deputados, pesam somente 23,5%. Neste sentido, Luanda teve um défice representativo de -8,9%, que correspondeu a menos 24 deputados dos 71 que seriam de se esperar para os 32,44% de votos alcançados (num modelo de um único círculo de eleição).
A DPA de 2024 só estaria ajustada à proporcionalidade eleitoral, concluímos, com uma redução de -8,9% da população de Luanda, tendo em referência as eleições de 2022. Ora, é muito pouco provável acontecer uma redução da capacidade eleitoral efectiva do círculo eleitoral de Luanda. Por isso, os fundamentos políticos avançados pelo Executivo em defesa da DPA deviam ser colocados à consideração do TCA, na medida em que esta afecta profundamente o princípio da representação proporcional estabelecido na CRA de 2010.
Com base nas nossas projecções, a criação de três novas províncias apenas agravará as situações de distorções representativas que acontecem no âmbito do sistema eleitoral angolano, por força da distribuição artificial de 5 deputados por cada círculo provincial, sem atender à população de cada círculo, conforme demonstramos no nosso livro.
Por isso, será apenas necessário um partido angolano obter 37,53% dos votos válidos para alcançar 124 deputados – 75 no círculo provincial e 49 no círculo nacional (segundo a Projecção do Efeito da DPA de 2024 na distribuição dos deputados nos pequenos círculos, com base nas eleições de 2022). Estes 124 deputados representam uma maioria absoluta de 57,8% num parlamento de 235 deputados, segundo a nova configuração trazida pela DPA de 2024. Para este resultado contundente, não se necessitaria sequer de um único voto dos maiores núcleos populacionais do país: Luanda, Benguela, Huambo e Huila.
Estas distorções representativas ocorrem nas eleições angolanas desde 1992. Denotam, em suma, que o sistema eleitoral angolano que determina que os deputados são eleitos de acordo com o princípio de representação proporcional, pode funcionar na prática como um sistema de maioria simples.
Tribunal Constitucional de Angola (TCA) e a DPA de 2024
O TCA tem a faculdade de observar se as normas infraconstitucionais estão em concordância com o texto constitucional, pelo que se poderá pronunciar sobre a DPA de 2024. Para este efeito, teria de possuir uma capacidade técnica e compreensão da mecânica do sistema eleitoral semelhante ao “Tribunal Constitucional Federal da Alemanha [que] estabeleceu que uma barreira de 5% deveria constituir o limite superior da barreira legal, proibindo qualquer mudança posterior que viesse a fortalecer o ‘efeito redutor’ do sistema, por ser incompatível com o princípio de representação proporcional”.
Em Angola, qualquer criação de novas províncias através da divisão de outras províncias, excepto a de Luanda, configura um acto de redução da proporcionalidade, pelo que este acto devia ser compensado com a expansão da representação no círculo nacional. Ou seja, o círculo nacional actua, tecnicamente, como um círculo de compensação da desproporcionalidade causada pelos círculos provinciais. Por isso, é uma função central do TCA preservar o princípio proporcional.
Vejamos na prática o efeito redutor do círculo de compensação com a DPA de 2024: o círculo nacional pesa 59,1%, acabando por eleger 59,09 deputados, valor que cairá para 55,3%, menos -3,8%. Por sua vez, o círculo provincial terá uma expansão representativa de 40,9% para 44,7%, mais 3,8%. Estamos, deste modo, a reduzir o efeito de compensação da desproporcionalidade que é assegurada pelo círculo nacional.
Como evitar interferências em sistemas eleitorais de duplo círculo
Uma série de cadeados institucionais e legais são possíveis para evitar interferências indesejadas do Executivo no processo eleitoral. Em Angola, tal não se verificaria caso fosse adoptado, por exemplo, o modelo organizacional da Alemanha. Este país também possui um sistema eleitoral de duplo círculo, tal como a realidade eleitoral angolana.
No caso alemão, a lei estabelece que o Presidente da República Federal nomeia uma comissão eleitoral permanente para a divisão dos círculos eleitorais. A actuação desta comissão encontra-se fortemente restringida pela Lei Eleitoral Federal alemã, que determina os limites de eventuais reformas em três aspectos essenciais: a) “as fronteiras entre os estados federados devem ser mantidas”; b) o contingente populacional de um círculo eleitoral não deve oscilar em mais de 25%, acima ou abaixo da média do contingente populacional dos restantes círculos eleitorais (se a divergência for mais de 33%, deverá ser feita uma nova delimitação); e c) o número dos círculos eleitorais em cada Estado federado deverá corresponder (..) à concentração populacional (art.º 3.º, n.º 2, alíneas 1 a 3 da Lei Eleitoral Federal).
Apesar desta comissão eleitoral independente não responder directamente ao executivo alemão, está obrigada, por lei, a submeter o seu relatório ao Ministério Federal da Administração Interna que, por sua vez, o envia para discussão e aprovação do parlamento.
Já no caso angolano, assiste-se à intervenção técnica do MAT, que propõe diferentes reformas administrativas sem alterar a magnitude dos círculos provinciais. No entanto, consegue modificar os limites geográficos das províncias, como aconteceu com o Bengo e Luanda, conforme frisamos supra. Nesta medida, pensamos que a última reforma administrativa aprovada pela Assembleia Nacional (na sequência de uma iniciativa do TPE) representa, efectivamente, a diminuição do grau de influência do círculo de Luanda, que é o círculo mais populoso e onde, em consequência, o peso do voto dos seus eleitores é agora menor.
Deverá ficar aqui patente que apenas um processo de reconfiguração do sistema eleitoral angolano de duplo círculo eleitoral para um círculo único nacional, elegendo todos os deputados, poderia assegurar uma proporcionalidade do círculo de Luanda.
Problemas e contradições da representatividade política no quadro da DPA de 2024
O governo representativo em Angola está baseado “na vontade do povo angolano” (art.º 1.º da CRA de 2010). Porém, o governo moderno representativo encerra um conjunto de contradições teóricas e práticas que são, em si, problemáticas na sua concretização prática. A representação política gera, necessariamente, uma distinção de dois corpos – os governados e governantes – movidos por vontade distintas e com instrumentos de acção distintos em si.
Se considerarmos esta premissa, denotamos que a argumentação do Executivo sobre a DPA 2024 está encerrada num conjunto de contradições. É o próprio Executivo quem interpreta e determina quais são as necessidades das populações, acreditando que um instrumento de gestão territorial servirá para responder a tais necessidades. Isto, sem mensurar de forma taxativa e objectiva os efeitos negativos de tal decisão. Este facto remete-nos para um poder político com a possibilidade de estabelecer regras sem consentimento dos governados.
A DPA revela, assim, que os governantes não estão rigidamente vinculados a um contrato representativo. Eles possuem ampla liberdade para implementar a sua agenda política, sem autorização prévia dos cidadãos.
A representação política, desde o início, enfrentou uma crise de legitimidade, pois o mandato entre governados e governantes não pode ser revogado. Para mitigar essa crise democrática, ensaiaram-se soluções teóricas, mas sem sucesso: o chamado recall, que permite revogar o mandato de qualquer representante política, e o referendo. Em Angola, opta-se pelo processo de auscultação, uma prática comum, como no caso da DPA de 2024.
Infinitude do poder: autonomia de vontade e a descrença no político
Na qualidade de cientista político e versado nos assuntos eleitorais, procurei demonstrar os efeitos práticos e eleitorais da DPA de 2024 para as eleições de 2027, sobretudo na redução da capacidade efectiva do círculo de Luanda. Igualmente, ilustrei como o TCA poderia actuar no quadro da DPA, baseando-se nas decisões do Tribunal Constitucional Alemão. Por último, expliquei a complexidade do poder e os instrumentos para o seu exercício no espectro político, evidenciando que o actor político actua com independência e autonomia de vontade, sem uma prévia autorização dos governados. Daí resultar o sentido crítico dos cidadãos angolanos face à DPA de 2024, cujo efeito prático é ampliar o grau de frustração colectiva dos resultados sociais e económicos em Angola. Aumentando, por efeito, a descrença no político – descrença esta que, no entanto, não serve de salvação face ao poder político.