"Cnr Leila Khaled and Winnie Mandela Dr."
Original in English
Nós estávamos lá.
Nós sempre estivemos lá.
Nós estávamos lá quando o homem a cavalo sacou uma arma e tirou a nossa filha Bontekanye da mãe e entregou-a à sua esposa.
Ele e sua esposa deram um novo nome à sua “nova” filha, Karien.
Consideravam-se pessoas boas, atendendo ao chamado do governo.
Eles iriam civilizá-la.
Ensinar-lhe a ler, escrever e a fazer contas.
Ensinar-lhe sobre a Bíblia e a importância de oferecer a outra face.
Para que ela pudesse ser uma preta inteligente.
Uma kaffir astuta.
Sempre ao seu lado e a defender os seus interesses.
Deves estar a perguntar-te, por que razão permitiram que o homem com a arma a levasse?
Nós respondemos-te, sabíamos o que estava por vir.
Previsão.
Sabíamos que ela daria à luz a Paulina.
E Paulina criaria o Neo. Um presente. O nosso presente.
Mais importante, nós não sabíamos como parar as balas.
Foram as armas que nos mataram.
Foi uma arma também que mataria o nosso filho Neo, muitos anos depois, numa terra distante de casa.
Então, culpamos as armas e a ganância dos proprietários dessas armas.
Mas.
Desde o início.
Nós estávamos lá.
Nós sempre estivemos lá.
Os agnósticos estão indecisos sobre a nossa existência.
Os ateus chamam-nos Os Falecidos.
A verdade é que os nossos corpos podem estar enterrados, a apodrecer, mas nós nunca morremos.
Estamos a observar.
Tentamos proteger.
E procuraremos vingança quando um dos nossos for levado. O acerto de contas pode demorar, mas chega.
Gaza 2023.
Neo, o nosso filho Neo, foi novamente como voluntário para Gaza, para uma instituição de caridade que opera na África do Sul e em Gaza. Já a tinha visitado antes e ficou horrorizado com o que presenciou. E assim, depois de passar a fronteira de Rafah, controlada pelo Egipto, ficava um mês todos os anos como voluntário a ensinar jornalismo, tornou-se a sua peregrinação anual. Lembrava constantemente aos seus jovens estudantes a importância de testemunhar, tal como dizia Baldwin. Acreditava que os testemunhos seriam úteis no futuro, para responsabilizar aqueles que cometeram atrocidades. Num futuro centrado nas pessoas, num mundo justo.
Gaza 2023.
Ele tinha partido há uma semana quando as notícias de um ataque a um etnoestado, responsável pelos problemas que Neo tentava documentar, chegaram.
Sempre soubemos que a sua vida terminaria ali, mas não sabíamos exactamente como.
Quando aqueles que ele tinha deixado em casa sugeriram-lhe que regressasse, ele optou por ficar.
Convencido de que a agressão do etnoestado duraria pouco.
Não era a primeira vez que via o seu comportamento. Mas acreditava estar protegido. E a verdade é que nós protegemos, mas os nossos poderes enfraquecem com a distância. E Neo estava a mais de seis mil quilómetros de casa.
E assim como o sequestro de uma de suas antepassadas, Bontekanye, a quem mais tarde chamariam Karien, Neo morreu nas mãos de um homem que se acreditava superior a qualquer habitante de Gaza em virtude da duvidosa cidadania do etnoestado. Um homem de pele clara. E numa estranha reviravolta do destino, um dos descendentes do homem que raptou Bontekanye, a quem mais tarde chamariam Karien.
Esse jovem, de nome Jan, mudou-se com o pai, após ter-se convertido ao judaísmo, porque, jovem como era, nascido depois de 1994, acreditava que a África do Sul estava entregue aos cães. Os seus pais, com quem se mudou, contaram-lhe sobre os “bons velhos tempos”. Os dias em que aqueles que eram a maioria no governo “pareciam-se connosco”. Agora, tenente das Forças Terrestres do etnoestado, não hesitou em olhar o nosso filho nos olhos, no hospital Al Shifa.
Foi o distintivo com a bandeira sul-africana que Neo usava no colete jornalístico que o denunciou.
— Um kaffir*. Estás a ajudar e a encorajar terroristas? O meu pai lutou contra vocês em Angola, na Namíbia e em casa e eu também lutarei contra ti. Malditos terroristas.
Foi então que Neo soube que estava a morrer, e com um olhar resignado, observou este homem, Jan, enquanto levantava a sua arma, olhando Neo directamente nos olhos e disparando à queima-roupa.
Nós vimos isso a acontecer. Os nossos poderes estavam fracos pela distância de casa, mas sabíamos que esse Jan, com sua família nostálgica do apartheid, tão nostálgica que deixou parcialmente a África do Sul porque o seu poder de oprimir tinha diminuído, e poderiam oprimir melhor no etnoestado. Sabíamos que o Jan faria várias viagens de volta à África do Sul para verificar alguns dos seus investimentos.
Naquela manhã, tivemos a nossa vingança.
Ele estava a correr e parou num semáforo na esquina da Winnie Mandela com a Leila Khaled. Um lugar adequado para acabar com ele.
Usámos uma túnica, em memória do trabalho das mulheres de Gaza que alimentaram o nosso filho, mesmo quando tinham pouco ou nada para dar. E usámos o rosto do nosso filho, para que ele se lembrasse por que isto estava a acontecer.
Piscou duas vezes, perguntando-se se estava a ver coisas.
— Quem são vocês? O que são vocês? — gritou.
Outras pessoas olhavam-no, perguntando-se com quem ele falava. Mas os habitantes de Joanesburgo são como são, fingiram não o ver e continuaram com as suas vidas.
Com o rosto do nosso filho, mostramos-lhe um sorriso malévolo. Com mãos que só ele podia ver, arregaçamos as mangas.
Eu disse “afastem-se de mim”, ele tentou, sem sucesso, bater-nos. Nós, que somos espírito. Nós, que só podemos ser vistos por aqueles que têm contas por acertar.
Foi o nosso sorriso, no rosto do nosso filho, que ele viu pela última vez, enquanto as mangas da túnica lentamente o sufocavam.
Provavelmente dirão que foi um ataque cardíaco.
Mas nós sabemos que ele viu a Morte com o rosto do nosso filho vestindo uma túnica na esquina da rua Leila Khaled com a rua Winnie Mandela.
Nós vingamos a morte do nosso filho naquele local, perto do Consulado dos Estados Unidos em Sandton, Joanesburgo.
Muito adequado, de facto. Tirar a vida que tirou a vida do nosso filho naquele lugar que representa o país que arma o seu etnoestado. O país que, provavelmente, lhe deu as balas que mataram o nosso Neo.
Em memória de Ahmed Abbasi e de todos os gazenses que foram mortos no genocídio.
*N.d.T. Em português, cafre; termo pejorativo que designa uma pessoa negra em alguns países africanos, incluindo a África do Sul.