Ensaio

A realidade angolana e o pluralismo jurídico

Luzia Bebiana Sebastião
foto/ilustração:

Em Angola, são vários os casos que demonstram a vigência de um Pluralismo Jurídico no qual vários sistemas actuam e regem, em simultâneo, a vida dos cidadãos angolanos. A Constituição de 2010 confere ao Costume estatuto de fonte de direito no país, mas não responde como encaixar na democracia participativa o sistema jurídico das Autoridades Tradicionais.

1. “Um dia no Tribunal de Mbanza Congo faz-se de mandioca, um leitão e uma falsa acusação de feitiçaria”. Este é o título de um artigo da Agência Lusa, do qual transcrevo alguns trechos.

“Em Angola, as autoridades tradicionais continuam a ter peso e funcionam paralelamente ao Estado, incluindo em matéria de justiça, com julgamentos em tribunais consuetudinários, decididos segundo os usos e costumes, como é prática em Mbanza Congo. (…)

Entre os casos a que a Lusa assistiu, esteve a paixão contrariada entre um ‘Romeu’ e uma ‘Julieta’ de Mbanza Congo, que envolveu uma acusação de feitiçaria. A mãe de ‘Julieta’, desgostosa com a escolha amorosa da filha, tentou inicialmente dissuadi-la, sem sucesso, e acabou a ameaçar ‘Romeu’ que ‘ia ver como era’. (…) Este ano, ‘Romeu’ adoeceu e morreu, tendo a família acusado a mãe de ‘Julieta’ de o ter ‘comido’ (matado).

A acusada, Graça Adelini, conseguiu provar a sua inocência após os adivinhadores a que recorreu declararem que o seu coração ‘estava limpo’. Voltou a tribunal para receber uma indemnização (…).

A sentença foi dada por Afonso Mendes, figura máxima da autoridade tradicional e representante do rei do Congo, e pelos 24 elementos da corte real que formam o lumbu, tribunal consuetudinário que julga questões comunitárias.

A sessão que decorre em kikongo (…) inicia-se por volta das 09h30. (…) O julgamento decorre com os conselheiros a dirigirem palavras sábias e recomendações sob forma de parábolas, cânticos e danças que servem também de ensinamentos. (...)

É chegada a altura da sentença de Graça Adelini. A acusada de feitiçaria terá de dizer se aceita a indemnização que lhe colocam à frente: um porquinho, um alguidar de mandioca, duas grades de cerveja e 5 mil Kwanzas.

Após sair para conversar com os familiares, Graça rejeita a indemnização, por considerar que o leitão demasiado pequeno não compensa a humilhação e vergonha que sente no bairro.

Segue-se um processo negocial em que ambas partes saem para conferenciar sobre as indemnizações que Graça continua sem aceitar, enquanto os familiares da acusada protestam de forma mais acalorada e ameaçam que vão ‘dar porrada’ a quem continuar a chamá-la de bruxa.

Os juízes acabam por determinar que a indemnização deve ser aumentada e entregue na semana seguinte, concluindo-se a sessão sem agradar em pleno a nenhuma das partes.”

2. Outros casos similares poderiam ser aqui trazidos. Como o que ocorreu em 2005 no município de Kuito Kwanavale, Kuando Kubango, e que ficou conhecido como “Fenómeno Kamutukuleni(o)”; ou a condenação do Rei Ekuikui V do Reino do Bailundo, em 2017, por dirigir um ritual tradicional que causou a morte a uma pessoa. São histórias diferentes que, na sua base, demonstram que Angola, em virtude do contacto que manteve com a Europa através da colonização,viveu sempre o problema da vigência na sua ordem jurídica de dois sistemas de direito: o do Estado e o tradicional.

O sistema de direito tradicional provém dos antepassados dos povos e comunidades nativas. Ao longo da história, acabou por ser influenciado com vista a “quase” desaparecer, tendo sobrevivido a séculos de desatenção, dado que as autoridades coloniais toleravam a sua existência, desde que não interferisse com o seu próprio domínio. De maneira silenciosa, foi-se desenvolvendo e conservando, já que constituía, e ainda constitui, a maneira de estar e viver daqueles povos e comunidades tradicionais.

Para grande parte da população angolana, estes dois sistemas de direito existem em simultâneo e em paralelo (“interlegalidade”). Nestas comunidades, o direito tradicional ou costumeiro é sempre o primeiro a ser chamado. Só quando não decide a questão a contento de uma ou de ambas partes, se recorre ao “direito estadual-oficial”.

É nesta conjuntura que Maria de Fátima Viegas diria em 2002, num encontro sobre as Autoridades Tradicionais no Processo de Resolução de Conflitos: “Relacionar a questão das práticas do Estado angolano com a problemática da tradição e da modernidade começa a ser um aspecto essencial e relevante na nossa sociedade, se tivermos em conta os fenómenos de desenvolvimento e de democracia... (…) Para a construção de uma democracia participativa numa sociedade como a angolana, saída de um regime colonial fascista (até 1975) e de um regime marxista-leninista regido por um partido único, torna-se fundamental o exercício do conceito de uma cidadania deliberativa caracterizada pelo diálogo e interacção entre os cidadãos e as estruturas estatais.”

3. Surge aqui um primeiro nível de dificuldade: se a submissão aos dois sistemas jurídicos pode ser possível, e até em certos casos desejável, mesmo em matéria criminal, o mesmo já não se pode dizer quando dessa aplicação resulta um conflito de soluções. Qual dos sistemas aplicar? Será que um significa necessariamente a exclusão do outro? Ou haverá uma forma de compatibilização?

Se em alguns ramos do direito as questões que se levantam podem não suscitar grandes dificuldades, tal não acontece no direito penal, que tem como base estruturante o princípio da legalidade da intervenção penal nullum crimen, nulla poena sine lege (não há delito sem lei prévia), o que conduz ao princípio da reserva de lei escrita. Ora, não ignoramos que o costume é oral o que, desde logo, nos coloca perante um segundo nível de dificuldade: Como compatibilizar a lei escrita com o costume oral?

Acresce que, por via do princípio da legalidade, o costume não se afigura fonte de direito penal incriminador. E isto representa um terceiro nível de dificuldade. O artigo 7° da Constituição da República de Angola (CRA) de 2010 erigiu o costume a fonte imediata de direito, equiparando-o à lei. Então, como compatibilizar este artigo com o princípio da legalidade da intervenção penal, previsto nos nºs 2 e 3 do artigo 65°, também da CRA? Será que o costume pode ser fonte de direito penal incriminador? Ou seja, podem-se qualificar comportamentos próprios do costume como crime, estabelecer penas e medidas de segurança, indicar circunstâncias agravantes ou até reduzir o âmbito das causas de exclusão da culpa? (Sebastião: 2019, p.319 a 320).

A expansão da democracia desde meados do século XX trouxe grande ênfase à ideia de soberania popular e com esta, a ideia de um direito vinculado à vontade do povo, expressa no modelo de democracia representativa. Porém, em pleno século XXI, o mundo mudou significativamente. A sociedade construída por indivíduos iguais e indiferenciados deu lugar a uma outra, com pessoas marcadas pela diversidade cultural, que criaram laços; e estes laços originaram formas de expressão política mais diversificadas.

Surge, assim, a necessidade de se criarem novos modelos de democracia, conjuntamente com um novo direito, que “multipliquem as modalidades e os níveis de participação política e novos paradigmas de direito, admitindo que o direito se possa exprimir por outras formas, para além das estaduais, de modo a poder dar conta de uma variedade e complexidade de planos de regulação que já estão ai” (Hespanha: 2013 p.63). Sublinhamos, reafirmando: um direito expresso por outras formas para além das estaduais.

A CRA de 2010 traz consigo uma mudança no sistema jurídico e confere ao costume, estatuto de fonte de direito em Angola. Contudo, o conceito de democracia com que Fátima Viegas (supracitada) e vários autores operam, não contou com essa mudança de paradigma. Como inserir o sistema jurídico das Autoridades Tradicionais na democracia participativa é a questão que se coloca.

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