Matriz

Aprender a ler

Ana Paula Tavares
foto/ilustração:
Associação Tchiweka de Documentação

Todos começámos as manhãs com a viva experiência do mundo, vinte anos e os livros de dentro e de fora cheios de palavras e vontade. Tínhamos nascido de novo na tarefa de converter em enunciados antigas sabedorias e pactos com a palavra dita inicial e fundadora, centro e origem de todo o universo e sua história. Diante de nós os mais-velhos sorriam desconfiados da nossa esperança de mudança: eles sabiam do silêncio e da hora de soltar a palavra aprendida em rituais de iniciação com a música ao seu serviço e o gesto afeiçoado, contos provérbios, poemas minúcias, o ser da vida e o coração a soltar o fio para tecer o discurso e dar consistência ao presente. A palavra está assim cheia dos seus próprios mistérios: uma moral herdada, normas de vida, caminhos de aprendizado. Da vida e da morte no seu fluxo e refluxo, sabiam os mais velhos, e a nós nada restava senão um punhado de livros velhos, vindos de longe, onde sobrava passado de uma história que não era nossa nem certa e faltava Angola como matéria de leitura.

Tínhamos livros, muitos livros, embrulhados em papel de jornal, e queríamos atravessar o rio pela margem esquerda para aprender a ler os sonhos, dividir a juventude, atravessar o espelho e desatar o nó que o colonizador havia segurado durante tantos anos. Queríamos inventar novas ideias, completar vazios e expulsar os medos. A ordem do conhecimento tinha de compreender os novos sujeitos, decifrar outros textos, aprender a conjugar novos verbos.

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