Fernando Pacheco é uma das vozes que mais se impõe, sem subterfúgios, na análise da sociedade e política angolanas. Aos 74 anos, olha para trás e vê um país bem distante dos sonhos que alimentaram a sua geração. A “geração dos quase”, como lhe chama, por não ter tido “verdadeiramente acesso” a cargos do poder – eram demasiado novos na altura da independência e agora já “não vão a tempo”. Não gosta de falar em falhas geracionais e admite que abandonar o aparelho do Estado e o MPLA, e fundar a ADRA, lhe deu uma liberdade de actuação para desenvolver os seus projectos sem obedecer a ordens “superiores”. “Não estou nada arrependido”, garante.
Desde que Angola é independente, tem vindo a contribuir na sua área de saber com vista a um futuro melhor. Chegou onde queria?
O meu sonho era que, neste momento da minha vida, Angola fosse um país próspero, desenvolvido, pacífico, sem pobreza nem desigualdade social e com democracia. Por variadíssimas razões, em quase todos estes aspectos o país está muito longe de cumprir. Não considero que tenha sido uma falha minha, porque procurei, na medida do possível, contribuir para que estes objectivos fossem alcançados. Possivelmente não o terei feito da melhor forma, mas procurei dar o meu melhor. Muitas vezes, sacrificando-me a mim e, principalmente, a minha família.
Pelo conhecimento que detém podia, por exemplo, ter abandonado o país nos momentos mais difíceis e fazer a vida em qualquer outra parte do mundo. Por que não o fez?
Isso nunca passou pela minha cabeça. Nunca tive qualquer sentimento de fazer a minha vida fora de Angola. Sou angolano, sinto-me angolano, vivo Angola, tenho uma apreciação muito forte pelo povo angolano na sua diversidade e não me vejo a viver noutro país. Aliás, quando por vezes em férias ou em serviço saio do país, ao fim de duas ou três semanas começo a sentir falta deste fervilhar característico de Angola, que faz parte da minha cultura e sem o qual não consigo passar.
Sendo que, volvidos quase 48 anos, muito do que sonhou não foi realizado, o que terá falhado?
Há várias razões. A primeira, obviamente, é a guerra. O facto de, em 48 anos de independência, só termos vivido 21 anos de paz efectiva, dificultou enormemente todos os processos de desenvolvimento que o país poderia ter. Digo “poderia”, porque, de facto, e essa é a segunda razão, o país não teve uma visão de desenvolvimento. Tudo começou por erros cometidos nas opções políticas que se fizeram logo no início [da independência]. Na altura, concordei em absoluto com a opção socialista, mas com o tempo apercebi-me que não foi a mais adequada, naquele modo e naquelas circunstâncias, porque não teve em conta a realidade concreta do país em vários aspectos, como o do forte sentimento religioso da população, por exemplo. Angola não tinha condições objectivas nem subjectivas, no sentido de condições humanas, para enveredar por aquele caminho. Visitar o pensamento de Viriato da Cruz posterior a 1966 pode trazer subsídios interessantes sobre esta questão. Se juntarmos a isso o facto dessa opção socialista nos ter obrigado a manter uma guerra, quer de agressão por parte de outros países (como o regime do Apartheid), quer um conflito civil, então percebemos como estivemos condicionados.
Tendo em conta as alianças que o próprio MPLA, na altura, fez com alguns países socialistas e comunistas, era possível adoptar o regime democrático em Angola depois da independência?
Não… Vejamos, naquela altura, em Angola não se falava de democracia. Falava-se, sim, na possibilidade de se encontrar um projecto comum para todas as forças políticas que se confrontavam. É evidente que era muito difícil, devido às alianças do MPLA e dos opositores com lados diferentes da Guerra Fria. Mas não era impossível.
Ou seja, o MPLA estava num beco sem saída.
O MPLA deveria ter percebido que aquela guerra não conduziria a lado nenhum. Dei-me conta disso, pela primeira vez, quando participei no que, penso, foi o primeiro encontro entre representantes dos governos angolano e sul-africano, no início de 1979, ainda durante o Apartheid.
O que aconteceu?
Nessa altura, o Presidente Neto nomeou uma equipa para negociar com os sul-africanos. O encontro foi na fronteira sul, e tínhamos orientações para sermos flexíveis, porque era importantíssimo acabar com a guerra. As palavras do Presidente Neto, na altura, foram: “Independentemente de serem do MPLA ou da UNITA, todos os dias morrem angolanos e precisamos de acabar com isso imediatamente”. Ora bem, isto enquadra-se no que acabei de dizer. Mesmo quando se questiona se, com a opção socialista era possível, respondo que sim, porque o Presidente Neto não estava a abdicar da sua posição socialista. Estava, sim, a ser suficientemente pragmático para encontrar uma solução que tivesse em conta que Angola não poderia continuar em guerra.
“Uma das fragilidades do MPLA é não entender a realidade”
Ao longo dos anos 48 de governação do MPLA, o país vive de promessas e planos políticos que quase nunca são realizados, como, por exemplo, “um milhão de casas”, “água para todos”, “combate à corrupção”, entre outros. O que falta para que os projectos apresentados em campanhas eleitorais aconteçam, de facto?
Essa é uma das fragilidades do MPLA, actualmente – uma imensa dificuldade de entender a realidade. Nessa sua obsessão pela manutenção do poder, não se preocupa em conhecer os fenómenos, perceber as forças e fraquezas do país e dos sectores. Vem sempre com propostas que, muitas vezes, têm até origens em circunstâncias de momento. Quando me pergunta se o MPLA tem que mudar, é evidente que sim. É por isso que digo que o MPLA não tem que continuar no poder. Pelo menos desta forma.
Embora o país seja rico em recursos e também tenha recebido vários financiamentos internacionais, o nível social e económico da população, na sua maioria, ainda é arrasador. Porquê?
Normalmente, a essa questão as pessoas respondem que foi um problema de corrupção. Digo que sim, foi claramente um problema de corrupção, mas alinhado a outros dois fenómenos importantes: a incompetência e a disfuncionalidade das instituições. Não tínhamos instituições estruturadas e organizadas para assumirem financiamentos dessa natureza. Como tal, os incompetentes tomaram conta das instituições e eles próprios tornaram-se corruptos e permitiram a corrupção. Esses elementos associaram-se para que tivéssemos esse falhanço espectacular no aproveitamento dos investimentos. Um exemplo desta disfuncionalidade é o investimento da União Europeia. Vemos hoje projectos que foram implementados, mas com resultados nulos. Em muitos casos, as estruturas físicas ficaram aí a degradar-se até desaparecerem ou serem reconstruídas e reinauguradas uma e outra vez.
Que avaliação faz da governação do Presidente José Eduardo dos Santos (JES) durante os últimos anos, comparativamente à de João Lourenço (JLo) no primeiro mandato?
Os últimos cinco anos de governação do Presidente JES foram muito maus para Angola… (silêncio) Mas para entendermos melhor os últimos cinco anos temos que recuar até 2002, quando ele perdeu, por responsabilidade própria, a possibilidade de receber ajuda internacional para a reconstrução do país. E isso aconteceu, porque a comunidade internacional exigia resultados na transparência nas contas públicas e na luta contra a corrupção e a pobreza. JES não estava interessado nisso e, para nosso mal, socorreu-se dos empréstimos da China e do aumento da produção de petróleo face à subida do preço internacional do barril. Como consequência, fizeram-se investimentos completamente disparatados.
E pagamos o preço.
Depois veio a hecatombe. Nos últimos anos de governação de JES, os preços do petróleo voltaram a descer e ele, porque já estava doente e fragilizado, não teve capacidade para enfrentar essa queda. Foi um descalabro a nível económico e social. Hoje, as pessoas só têm saudades do Presidente JES porque se lembram do passado mais longínquo e não dos últimos anos que foram muito dolorosos, com programas não realistas, desadequados e níveis de cumprimentos muito baixos.
E quanto ao Presidente JLo?
Divido o primeiro mandato do Presidente JLo em duas partes. A primeira, são os dois primeiros anos, à qual chamo “Primavera Lourencista”, na qual apareceu com um discurso moderno, progressista, a romper com o passado, o que deu confiança às pessoas. Lembro-me de um amigo me ter dito, nessa altura, que estava tão feliz como quando se deu o 25 de Abril, em 1974, em Portugal, e que culminou com a nossa independência no ano seguinte. Se lhe for perguntar agora, de certeza que não dirá o mesmo. Também achei que sim, que as coisas estavam a correr bem, com certas medidas de carácter económico e algumas reformas. A comunicação social abriu-se, a luta contra a corrupção parecia que iria andar bem.
O que mudou?
A partir de 2019/2020, tudo se inverteu. Chamo a esse período “o dos regressos indesejáveis.” Nos dois primeiros anos, o papel do MPLA praticamente tinha desaparecido, não sentíamos a interferência do partido no funcionamento do Estado e da sociedade, mas a partir de 2020 isso passou a acontecer. A comunicação social deixou de estar aberta, voltaram as ordens superiores e o despesismo. Os últimos anos do Presidente JLo não têm sido nada bons.
Não será porque, no início do primeiro mandato da governação do Presidente JLo, este ainda não era líder o MPLA?
Acho que agora vemos que os dois primeiros anos não mostraram quem era o verdadeiro Presidente JLo. Penso que terá utilizado aquela estratégia também para renovar o partido, pôr lá gente jovem, mais dócil e que se submete mais facilmente às suas orientações.
É daqueles que também entende que o combate à corrupção é selectivo?
Esse é o sentimento que existe na sociedade e claro que comungo dele, porque não é aceitável que a variadíssimas personalidades com uma gestão de dinheiros públicos altamente suspeita não lhes tenham sido abertas investigações. Depois, há outros para quem os processos começam, mas não acabam.
Foi membro do Conselho da República no primeiro mandato do Presidente JLo. Aconselhava-o, de facto?
Enquanto membro do Conselho da República tinha um posicionamento que me permitia dar opiniões. Algumas foram aceites e outras não, o que é natural. Mas aproveito para dizer que em Angola não há um entendimento claro sobre o papel dos membros do Conselho da República, que não são conselheiros do Presidente enquanto Titular do Poder Executivo, que para isso tem outros conselheiros, mas devem fundamentalmente tratar de assuntos de Estado, de acordo com o que estipula a Constituição.
“Somos parte de uma geração amputada”
Perante o cenário político e socioeconómico que descreve, e olhando para trás, que legado deixa a sua geração para o país?
(silêncio de quase dez segundos). Quem tinha entre 15 e 25 anos na altura da Independência, como eu, faz parte de uma geração amputada. Submetemo-nos às pessoas mais velhas que fizeram a luta de libertação com armas nas mãos ou na clandestinidade, e que ficaram com o poder na Angola independente. Estes jovens que lutaram através de outros métodos - escrevendo, passando informação – nunca chegaram verdadeiramente ao poder. Hoje, estamos a dar o salto geracional, e os tais jovens que tinham, na altura, entre 15 e 25 anos, têm agora entre 60 e 70, e já “não vão a tempo”. É uma “geração do quase”, que quase esteve no poder, e que hoje pode dizer que não tem responsabilidade pela Angola que nos está a ser legada.
Não é o seu caso…
Eu não. Pessoalmente, fiz parte do poder. Nunca estive nos escalões mais altos, mas sim nos intermédios, onde podíamos influenciar, mas não decidir.
Isso motivou o seu abandono do MPLA?
Em determinado momento, senti que não estava bem nessa situação do “quase” (risos)… de colaborar com o poder e ver que as políticas, os planos, os programas e, sobretudo as práticas, não eram do meu agrado. Então decidi sair. Deixei de ser militante do MPLA e de trabalhar para o Estado em 1990, para percorrer um caminho independente, o da sociedade civil, no qual me revi na medida em que ali encontrava espaço para desenvolver as minhas faculdades, projectos e ideias sem ter que obedecer a “ordens superiores”. E não estou nada arrependido. Em quase 48 anos de independência, só estive ligado ao poder 15 anos.
Muitos contemporâneos seus não conseguiram fazer essa transição. Foi esta uma das falhas da sua geração?
Eu não gosto de analisar as questões na base de geração, porque as gerações não podem ser definidas como compartimentos separados. Encontramos gente que falhou ou que teve sucesso em todas as gerações, antigas ou novas.
Perfil
Nasceu em Calulo, província do Cuanza-Sul, em 1949. Fernando Pacheco licenciou-se em agronomia em 1974, na então Nova Lisboa (Huambo). Durante os 15 anos que esteve ligado ao aparelho do Estado, foi Director Nacional no Ministério da Agricultura e Director do Departamento de Política Agrária do MPLA. Por via da ADRA (Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente), dos quais foi um dos fundadores em 1990, abraçou a sociedade civil. Posteriormente, foi fundador e membro de várias outras organizações, de carácter cívico, ambiental e cultural. No primeiro mandato do Presidente João Lourenço, foi um dos membros do Conselho da República.