Poeta, pianista, compositor, ícone da moda, guia cósmico, filósofo e bobo da corte, Sun Ra trouxe ao mundo sons do futuro envoltos numa mística milenar. Ao ouvir a sua música, sentimos que o tempo se funde – passado, futuro e presente – em interligação íntima.
Algum tempo depois da independência do Gana, em 1957, o músico norte-americano Sun Ra oferecia ao presidente Nkrumah os serviços da sua orquestra. Informava que tinham algo essencial a transmitir para o futuro dos africanos. Não sabemos se a carta chegou às mãos de Nkrumah nem se este chegou a pensar na possibilidade de os convidar. Mas o certo é que a missiva não teve resposta e Sun Ra e a sua Arkestra, que nos finais dos anos 50 começavam a levantar voo, nunca tocaram no Gana. Alguns anos depois, Sun Ra comentou com um amigo que o futuro do já então derrocado Nkrumah poderia ter sido diferente se este tivesse aceite a oferta que lhe chegou do outro lado do Atlântico.
Que Sun Ra pensasse assim pode parecer arrogante ou até ridículo, mas ajusta-se à mentalidade de um músico visionário para quem a utopia era fonte de inspiração e prática quotidiana.
Poeta, pianista, compositor, ícone da moda, guia cósmico, filósofo e bobo da corte, Sun Ra trouxe ao mundo os sons do futuro envoltos numa mística milenar. Ao ouvir a sua música, sentimos que o tempo se funde: passado, futuro e presente, em interligação íntima.
Herman Poole Blount veio ao mundo em 1914 em Birmingham, Alabama. Mas quando escreveu a Nkrumah, já era um músico influente, na vanguarda do jazz norte-americano. Uma viagem espacial foi determinante. Segundo uma história que contou até ao fim dos seus dias, quando era estudante universitário apareceram-lhe alguns alienígenas que o ajudaram a viajar pelo espaço até Saturno. Nesse planeta, transmitiram-lhe mensagens e habilidades que deveria partilhar com o resto da humanidade quando chegasse a altura certa.
Incorporando esses ensinamentos - equações siderais para transcender a realidade humana -, Blount tornou-se músico na sua Birmingham natal. Passou parte da Segunda Guerra Mundial na prisão por ser objector de consciência. Ao juiz militar, argumentou a sua recusa em alistar-se, com base na jurisprudência e interpretação bíblica. Afirmou que usaria a sua arma para matar o primeiro oficial que encontrasse. O juiz, depois de ordenar a sua detenção, disparou: “I´ve never seen a nigger like you before” ("Nunca antes vi um preto como o senhor "). Ao que Blount respondeu: “No, and you never will again” ("Não, e não voltará a ver outra vez").
Em 1945, foi para o norte dos Estados Unidos, estabelecendo-se em Chicago, onde entrou em contacto com os arcanos e a história do antigo Egipto, uma fonte de orgulho crescente para a diáspora negra, como berço africano da civilização. Blount aprendeu então sobre novas interpretações das escrituras realizadas por muçulmanos negros e por movimentos como o dos israelitas negros, bem como a história da resistência negra à escravidão e ao colonialismo. A tecnologia e a ficção científica também foram influências para o músico que, em 1952, abandonou o seu "nome de escravo" e passou a chamar-se Le Sony ́r Ra, também conhecido como Sun Ra (inspirado no deus egípcio do sol).
As origens da Arkestra foram Ra e os saxofonistas Marshall Allen, John Gilmore e Pat Patrick. Com o tempo, a banda foi crescendo. O sucesso e relacionamento da Arkestra baseavam-se numa vida comunitária. Ensaiavam horas sem parar. O álcool e as drogas psicotrópicas nunca foram do agrado de Sun Ra, e não eram permitidos na comunidade musico-espiritual da Arkestra. Não precisavam de nada disso para expandir a consciência e chegar "mais além das estrelas".
A música do Arkestra evoluiu do swing de big-band até ao jazz cósmico, pelo qual é mais conhecida. Mas reduzir a sua música ao "cósmico" é um grande erro. Além do uso pioneiro de instrumentos electrónicos como o sintetizador Moog, a música de Sun Ra e Arkestra incorpora o polirritmo africano e explora as possibilidades da percussão. Para além do free jazz, a música da Arkestra amalgama sensações e métodos díspares: beleza, arcaísmo, futurismo, caos, ternura, improvisação, pop, experimentalismo, minimalismo, funk, electrónica ou swing dos anos 30.
Em 1957, criou a sua própria editora, Saturn Records, com a qual lançou a maioria dos seus mais de 100 álbuns, em tiragens bastante limitadas com belas capas que se tornaram objectos de coleccionador. Nisso também foi pioneiro: não era comum um músico negro ter sua marca e lançar a sua própria música. Sun Ra não queria nem precisava confiar nos estúdios e gravadoras mais estabelecidos e controlados por brancos. Ele tinha controle absoluto sobre a sua arte.
Sun Ra também escreveu poesia. Alguns destes poemas são cantados em algumas das suas mais belas canções; outros ficaram em papel. Na verdade, os títulos da sua música são muito poéticos: “Stars that shine darkly” (“Estrelas que brilham escuramente”), “Cosmic Tones for Mental Therapy” (“Tons Cósmicos para Terapia Mental”) ou “Satellites are spinning” (“Os satélites estão a girar”).
No início dos anos sessenta, Sun Ra e os seus companheiros mudaram-se para Nova York e começaram a usar elaborados trajes coloridos, inspirados no antigo e no futurista – um híbrido de faraós e astronautas. Seguiram depois para Filadélfia, onde se estabeleceram permanentemente até ao retorno de Sun Ra ao plano astral em 1993. Ao longo da sua vida, visitou África apenas duas vezes: o Egipto, em 1971; e a Nigéria, em 1977, convidado do Festival Mundial de Arte e Cultura Negra e Africana (FESTAC), onde teve seus altos e baixos com os organizadores.
Sun Ra foi o primeiro afrofuturista e não se pode entender este movimento-estilo artístico sem a sua contribuição fundacional. A música de Sun Ra é uma ferramenta que visa superar os traumas da História, especialmente a escravatura atlântica, através da fuga para outros mundos (externos e internos). A emancipação é um salto para o futuro que passa pela Núbia e pelas Pirâmides. A sua opinião sobre os Estados Unidos pode ser resumida numa cena do filme “A Joyful Noise” (“Um Ruído Alegre”), na qual, estando em Washington, de frente para a Casa Branca, atira: "Não vejo a Casa Negra".
A Arkestra continua a existir e a tocar, liderada por Marshall Allen e John Gilmour. Em 2022, lançou um novo álbum. A influência de Sun Ra não pára de crescer e são uma legião, os amantes da sua música e da sua mitologia Astro-Negra. A sua máxima continua: “We travel the spaceways!” (“Viajamos pelos caminhos espaciais!”).