Eu sempre gostei de observar as coisas, os movimentos, as pessoas criadas pela minha imaginação, resultantes das sombras que cada claridade acanhadamente reproduza os nossos olhos. Aprendi com uma senhora antiga nos dias, ela vem do passado, se percebeu mulher a partir da sombra que seu corpo reflectia na parede, ilustrada pela luz minúscula que rasgava o chaminé do candeeiro a petróleo que sempre ficava a dois passos da porta a conservar uma velha tradição. Conta que a sombra dançava ao ritmo da cor da luz, “a luz nas mãos dos homens tem várias cores, o azul e a cor do fogo são as mais decisivas”, diziam as mulheres. Na luz azul ela sentia a sombra do corpo em alerta, com os seios pontiagudos exibindo-se para fora a quase querer despedir-se do corpo, como se de uma peça teatral se tratasse. As cores manuseadas pelo tecido trocida que banha o petróleo eram as que ela queria ser, até antes de, inesperadamente, depois de vários passos de dança com o reflexo, elaborar um outro personagem através da sua imaginação, depois de já lhe ter dado um nome masculino apesar de carregar um par de seios e forçadamente pelo impulso do ardente desejo adolescente de quer ver seus lábios a tocarem em um outro par de boca, beijar a parede imaginando ser uma outra pessoa aquela sombra, abaixava-se.
A saia lambada faz um vento pequeno no quarto,
o fogo tremeu, virou um risco fininho cor laranja dentro de jarro de vidro impotente.
A menina sorriu,
imaginou que, mesmo pequeno,aquele risco laranja podia pôr abaixo a casa toda.
Virou cinza,
amaldiçoou o palito de fósforo que foi usado para acender a trocida,o palito pálido já sem vida.
Abaixou e apagou o fogo soprando com a boca com tanta força que salivas saltaram-lhe ao rosto.
Quarto escuro.
A luz é o maior indicador para o tempo, anuncia os dias e a vida, a noite e a morte.
A luz é um impulsionador de imaginários, alcança cada pequeno pensamento, puxa-o para perto de nós e faz virar imagem, um breve enredo cinematográfico, o género e o título dessa obra é sempre um mistério até a interpretação acampar em nossos conceitos e perdermos a habilidade de enganarmos a nós mesmos,perdermos a mística, sucumbir o pouco compromisso que temos com a realidade. O género dramático nesse cenário esquisito é composto de gente, de cheiros, dos abraços não planeados que trocamos na rua e em casa, ou quando inesperadamente abraçamos a nós mesmos e deixamos cada pedaço desses abraços embrulhar na roupa posicionada de forma desrespeitosa na cadeira mais próxima da cama ou em um outro suporte dentro do quarto. Às vezes o suporte somos nós.
A sombra nesse palco inusitado é um alerta necessário, nos lembra sobre a vida mais que tudo e todos, é uma máscara que usa o toque de forma subliminar para nos acariciar a alma, acalma, espalma.
O reflexo dessa sombra é o contraditório dessa trama,contracena com a luz, desenha sobre os nossos olhos um corpo musculoso e sem seios, é um homem na parede,o homem que existe dentro da gente.
Venha a ver luz
veio
apagou veio deslizou.
Um pequeno palito de fósforo nas mãos de qualquer pessoa com pouca experiência e convivência com o fogo é igual a uma bomba nuclear com um grande poder de destruição, em virtude da grande quantidade de energia que ela libera, o medo e o desconhecido são os mais relevantes nesse recinto. O medo acelera nossos batimentos cardíacos, uma resposta do organismo cuja função é preparar o protagonista para uma possível luta ou fuga. O palito ainda na mão do personagem minutos antes do deslize,é um forte aliado da vida, um clarão de emoções até então indecifráveis para os homens.E em curtos milésimos, esse clarão pode se tornar numa intensa escuridão, ou novamente num grande clarão de chamas sobrevoando o espaço, a queimar até um infinito. O tamanho do início desta chama é indiferente para o enredo, seja ela minúscula ou diminuída com a grande quantidade de calor humano necessária mais tarde. O desconhecido é um combustível potente e um forte aliado da morte.
O deslize do palito das mãos é muito parecido a um desvio qualquer, todo desvio é inesperado,uma solução casual para dissolução de uma situação imediata. É inevitável esse deslize.
O palito cai,o fogo cobre toda parte química do fósforo durante a queda, os olhos do personagem desfrutam de um passeio cuidadoso ao movimento, a sombra reflectida na parede acresce um tamanho imaginário ao palito, várias vezes maior, o palito baila em câmara lenta enquanto cai, como se de uma partida se tratasse. A sombra do palito é igual ao do corpo presente naquele espaço. O personagem emociona-se, aceita o chamado à dança, acompanha desimportadamente o movimento do palito,estica os braços para o leste e para o sul do quarto. A sombra dos seus braços dá asas ao antagonista que dança sem tocar os pés ao chão, fertiliza seus gestos ao ritmo da luz cor do fogo que ilumina o quarto. O personagem sorri, faz um vento pequeno com a voz que encoraja a chama a ocupar o lugar de gente, o fogo fica maior, forma uma cabeça bonita aquele corpo.
A chama atinge a madeira, o corpo esmorece, aos poucos sete centímetros do chão, a parte química do fósforo já sem vida separa-se da madeira, uma cinza grossa e preta cai ao chão, despedaça-se desesperadamente, a sombra na parede ganha o seu tamanho real, o palito cai ao chão, um em cada lado, impotentes,sem conseguirem reproduzir nenhuma sombra.