Matriz

A jornada de Cisoka que se cruza com a nossa!

Leopoldina Fekayamále
foto/ilustração:

O feitiço marca-nos. No imaginário colectivo, abundam diversas histórias que, volta e meia, falam de pessoas acusadas de serem feiticeiras, de outras que terão sofrido alguma enfermidade por conta de algum feitiço, ou de outras mais, ainda, que terão herdado dos seus ascendentes a arte de enfeitiçar. É uma escala quase infinita que pode originar múltiplas reflexões e estudos sociológicos.

É pensando nesse imaginário colectivo complexo da nossa sociedade que o romance do escritor angolano Aníbal Simões, “O Feitiço da Rama de Abóbora”, torna-se de especial pertinência. Naturalmente, o interesse no livro não se confina à questão do feitiço. O discurso do romance dialoga com costumes, valores morais, crenças, mitos e provérbios, rituais e muito com a geografia do interior de Angola. 

A obra teve a sua primeira edição em 1991, ano em que venceu o Grande Prémio Sonangol da Literatura. Seguindo um rumo diferente dos seus contemporâneos, o romance coloca no centro a Angola longe do asfalto, a que muitos chamam de “Angola rural”. Mas mais que isso, é a ‘Angola ancestral’ que marca todas as páginas.

No centro da narrativa temos Cisoka, o protagonista, vítima do feitiço da rama de abóbora que lhe muda a vida radicalmente. Cisoka passa por várias situações difíceis, sendo a mais dolorosa a obrigação de deixar a sua aldeia natal, em exílio, para procurar a cura do seu feitiço. A busca leva-o numa longa jornada, anos a fio, por vários cantos do país. E é nessa viagem que sentimos o coração do romance bater com um ritmo frenético. 

A busca de Cisoka pela cura transcende e transforma-se no resgate da sua identidade afectiva, territorial, social e cultural. Nessa procura, entende que precisa de aprender mais sobre as aldeias em que vai habitando e sobre as pessoas com quem se vai cruzando. Para além do que é visível, nota, é vital explorar o imaginário colectivo e compreender o que lhe dá vida. Cisoka dá-se conta, por exemplo, que relembrar e respeitar a memória dos ancestrais é fundamental para construir um futuro assente em raízes fortes.

Ao mesmo tempo, apercebe-se, ao longo da jornada, que determinadas práticas e valores afectivos constroem as vivências dos espaços, como o acto de acolher e dar de comer a um desconhecido sem esperar recompensa. Ou a celebração do nascimento de uma criança por uma aldeia que, nesse acto de vir ao mundo, sente como renova a própria vida. A explosão é uma festa em que a comunidade celebra a sua continuidade e assume a responsabilidade de acolher e educar o novo membro da família social. 

À medida que Cisoka se conecta, conhece e procura absorver toda a sabedoria dos espaços por onde passa, não se coloca como simples espectador e colector de informações. Ele reflecte criticamente sobre tradições e costumes que, na sua contemporaneidade, não fazem sentido. Cisoka entende que é preciso repensar a pertinência de determinados hábitos para melhorar o presente e construir futuros mais humanos e inclusivos.

A jornada de Cisoka convida-nos, e, mais do que isso, obriga-nos a olhar à nossa volta e a fazermo-nos as mesmas perguntas que ele faz a si próprio o tempo todo: o que será de nós enquanto colectivo? Que caminhos ainda percorreremos e que conexões teremos com o nosso passado? Que lugar terá, no nosso futuro, a memória do que foram os nossos ancestrais, os seus modos de vida, a sua relação com a natureza, os seus códigos de conduta, os seus valores afectivos e culturais? De que forma o nosso presente se conecta ao nosso passado e se irá conectar ao nosso futuro? O nosso imaginário social actual é composto por crenças, práticas e valores suficientemente fortes para construir a Angola justa com que todos e todas sonhamos?

A jornada de Cisoka é de descoberta, de absorção, de reflexão e de construção. Cisoka desperta, por exemplo, para a riqueza de provérbios e fábulas contadas em Umbundo, o que aquece o seu coração e o aproxima mais da sua terra. 

Ao contrário de Cisoka, na nossa vida social contemporânea vemos a falta de políticas e investimentos no ensino, difusão e preservação das diversas línguas bantu e não só, que existem no território de Angola. O presente indica-nos, portanto, que temos caminhado para o futuro desligados de alguns elementos importantíssimos como a nossa própria expressão. Mas, e isso é fundamental, o presente também nos oferece a possibilidade de procurarmos caminhos para nos reconectarmos.

Ao fim da jornada de Cisoka, fica patente a certeza de que não podemos construir nada sozinhos e que a formação da nossa própria identidade tem bases no colectivo. Qualquer caminho pessoal que pretendamos percorrer cruzar-se-á com outros caminhos. 

Ao tratar-se de uma nação, essa noção torna-se ainda mais importante. Os caminhos do presente e do futuro do nosso país precisam da consciência crítica, dos afectos e da responsabilidade de todas e todos nós. 

O livro termina com um provérbio em Umbundo que espelha este ideal e fica aqui registado: “Eteka limosi ka likwata ombya” – “Uma panela não pode ser sustida por uma única pedra de lareira”.

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