Ensaio

E o futuro que nos prometeram?

Israel Campos
foto/ilustração:
Sérgio Afonso / Arquivo Ngapa

Quase 50 anos depois da independência nacional, existe uma realidade, algures plantada, pela qual continuamos todos à procura. Depois dos ideais da paz, que se afirmaram indispensáveis para o alcance da dignidade e conquista de um rumo, continuamos a deambular, “batendo latas” pela nossa memória colectiva, por um futuro que nos prometeram. Que aceitamos. Mas que nunca chegou.

Este futuro prometido que pretendemos mapear aqui com alguns dos muitos exemplos que abundam em folhas de jornais oficialistas, começa essencialmente desde o início dos anos 2000.

Da saúde, ao milhão de casas, passando pela famosa "diversificação da economia”, que já parece música repetida, várias foram as promessas feitas pelo único partido que, desde Novembro de 1975, assumiu a responsabilidade de governar. Foi um dos líderes políticos deste mesmo partido que eternizou a máxima, segundo a qual: “o mais importante é resolver os problemas do povo”, uma importância cada vez mais relativizada pela incapacidade de se responder às questões deste mesmo povo que busca por este "país prometido” nas lixeiras, no descontentamento de um post do Facebook ou nas ruas, na arte, na revolta.

São transcendentes. Ultrapassam Agostinho Neto, o primeiro, José Eduardo dos Santos, o longo segundo, e agora João Lourenço. Mas todas elas, as promessas, têm como fio condutor o mesmo partido, o MPLA, que no uso gratuito do poder da palavra tanto prometeu e tão pouco entregou. E isto não somos nós a dizer. A realidade fala por si mesma.

Famintos sonhadores

Em Junho de 2008, uma célebre manchete do Jornal de Angola (JA) anunciava que a fome no país tinha os dias contados. “MPLA acaba com a fome nos próximos quatro anos”, lê-se no título da notícia que se baseava no programa e manifesto eleitoral do MPLA proposto para as eleições de Setembro de 2008, as segundas do país. Generosamente, ao mesmo MPLA “prometedor” foi conferido não quatro, mas quinze anos para resolver o problema da fome, um dos maiores problemas da nossa existência. Mas nem isso parece ter sido suficiente.

Num estudo publicado recentemente, a Amnistia Internacional (AI) classificou a fome no sul de Angola, em 2022, propriamente nas províncias do Cunene, Huíla e Namibe, como uma das piores de todo mundo, apontando para uma falta de intervenção adequada do governo para lidar com a situação de insegurança alimentar. Estes dados traduzem aquilo que vemos diariamente pelas ruas deste país fora. A precariedade das condições sociais são uma das maiores “pandemias” que vivemos em Angola, responsável pela morte, por exemplo, de 144 crianças só em 2021, segundo as próprias autoridades angolanas.

À incapacidade de lidar com este assunto, junta-se o descaso. Em 2019, o actual chefe de Estado e presidente do MPLA, João Lourenço, afirmava à Rádio Televisão Portuguesa, perante a estupefacção geral: “Hoje há oferta de bens alimentares em Angola, não se pode dizer que existe fome em Angola, é uma questão de alguma má nutrição”.

Mas o que Lourenço tentou suavizar chamando de “alguma má nutrição" não são só estatísticas. Em Angola, como no mundo, a fome tem cara. É com algumas destas pessoas com quem Cecília Kitombe trabalha através da Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiental (ADRA), onde é directora provincial de Benguela. “O governo em Angola conceptualiza a pobreza nos marcos de uma abordagem ocidental, com a uma visão típica das agências internacionais, segundo as quais a pobreza se combate com acesso ao dinheiro”, afirma a também professora universitária. “As políticas são muito centralizadas pelo governo central e não consideram as realidades locais”, considera ainda.

Ao mesmo tempo, aponta Cecília Kitombe, não é possível combater a pobreza de modo isolado, sem um investimento sério e responsável nos sectores sociais chave: a saúde, educação e assistência social. E há também, “a questão da má gestão pública dos recursos disponíveis”. “A corrupção dificulta o acesso a direitos e a bens e serviços, sobretudo para a população mais pobre”, sublinha.

Saúde, um adiamento do dia-a-dia

No domínio da saúde, as promessas são desses comprimidos que não passam pela garganta. A inabilidade do governo angolano para investir neste sector levou a que muitos o passassem a tratar como um “parente pobre” dos programas governamentais. O Orçamento Geral de Estado (OGE) deste ano ilustra esta metáfora, ao dedicar somente 6,68% à Saúde, uma percentagem inferior à dos sectores da Defesa, Segurança e Ordem Pública, juntos.

Uma das mais flagrantes promessas feitas ao longo dos anos neste campo foi a erradicação da malária, não fosse esta, ainda hoje, a principal causa de morte no país. Só em 2021, mais de 13 mil angolanos morreram desta doença, segundo o Ministério da Saúde.

Numa notícia de Novembro de 2011, publicada no portal AngolaNotícias, que cita o Jornal de Angola, lê-se que a “Malária pode ser erradicada do país dentro de dez anos”. 2021, portanto.

Segundo o director-adjunto do Programa Nacional de Combate à Malária, na altura, Nilton Saraiva, "a vacina contra a malária ainda está a ser testada em África. Em Angola, pode ser desenvolvida nos próximos cinco ou sete anos. Vai ser um método importante para o nosso grande objectivo de eliminar a doença do país nos próximos dez anos”.

Mas é claro que, apesar de ter sido o porta-voz desta promessa, o médico Nilton Saraiva, é só parte do problema. Apesar de ele mesmo ter sido constituído arguido por alegado desvio de uma parte dos 100 milhões de dólares atribuídos pelo Fundo Global ao governo angolano para o combate à malária. Corrupção e promessas à parte, o problema é um só: apesar das doações milionárias (em Julho de 2020, o Jornal de Angola noticiava mais 82,6 milhões de dólares do Fundo Global “para combate à VIH/SIDA, a tuberculose e a malária”), esta doença continua a ser letal. Só no ano passado, a malária matou 12.485 angolanos, segundo o coordenador Nacional do Programa de Controlo da Malária, José Franco Martins.

Metro de superfície em Luanda? Até hoje, nem um centímetro

O sector dos transportes é daqueles que durante os anos produziu das mais optimistas e ambiciosas promessas. Os sonhos vendidos por este departamento ministerial transcendem dimensões e vão do ar à terra, do mar aos altos céus.

Vamos aos sonhos terrestres. Existe uma célebre reportagem da TPA, em que o então ministro dos Transportes, Augusto da Silva Tomás, promete que um suposto “Comboio Rápido Para Luanda” estaria pronto num período de dois anos.

Emitida em Setembro de 2014 pelo canal público, a pela mostrava um Tomás confiante: “Pensamos que nos próximos 24 meses possamos ter os projectos concluídos. Portanto, entre finais de 2016 e primeiro semestre de 2017”… o que não aconteceu. Mais recentemente, em 2021, o actual ministro dos transportes, Ricardo D’Abreu, disse que um novo projecto, o chamado “Metro de Superfície de Luanda”, teria a sua primeira fase concluída em 2023. A ver vamos.

E quem não se lembra do BRT? A sigla inglesa para Bus Rapid Transit (BRT) popularizou-se em Angola depois de, em 2015, o governo angolano ter prometido a criação deste sistema rápido de autocarros para Luanda. “Sistema de transporte rápido funcional em 2017”, lê-se numa matéria do jornal Expansão de Novembro de 2015. Em declarações ao jornal, Laura Alfredo, coordenadora do projecto pelo Ministério da Construção e Obras Públicas na altura, garantiu que quase 50% da execução física da obra já estava pronta. Até agora, nem meio feito, nem meio por fazer.

Questionado sobre estas e outras promessas, o comentador Cláudio Silva considera que as promessas políticas, em Angola, não são compromissos. “As promessas são puramente eleitoralistas, não têm qualquer relação com a realidade. São populistas, amplificadas pelos órgãos de comunicação social detidas pelo Estado”, comenta.

Energia, águas e infra-estruturas: quo vadis?

O domínio da Energia e Águas continua a ser um dos mais traiçoeiros desafios das sucessivas governações que o país já teve. Vinte anos depois da conquista da paz, fomos incapazes de fazer o mais elementar: garantir que todos os angolanos tenham acesso a água e a energia eléctrica.

Num país abundante em recursos hídricos, não são poucos os angolanos sem acesso à água potável para as suas necessidades básicas do dia-a-dia. A organização humanitária norte-americana World Vision International estima que quase metade da população de Angola, 49,3%, não tem acesso à água potável.

Vamos às tais promessas. Em 2010, o então secretário de Estado das Águas, Luís Filipe da Silva, assegurou que o executivo tinha “projectos em carteira” para garantir o acesso à água potável nas zonas urbanas e rurais em cinco anos, ou seja, 2015.  Oito anos depois, como reage o ministério de tutela face à falta de água potável em muitas zonas urbanas e rurais do país? Nenhuma. Até ao momento, o Ministério da Energia e Águas não respondeu ao nosso pedido de resposta.

O domínio das energias não é muito diferente. Apesar de uma melhoria significativa em algumas zonas do país, não são ainda todos os angolanos que beneficiam do privilégio de ter luz sem cortes regulares. O que, mais uma vez, põe em xeque as promessas políticas feitas ao longo dos anos. É que em 2012, o então secretário de Estado para a Energia, João Baptista Borges, hoje ministro de tutela, prometeu que os cortes de energia em Luanda terminariam em 2012, segundo uma notícia do Jornal de Angola de Outubro de 2011. Não só os cortes não acabaram, como continuam a existir zonas em Luanda, e ao redor, que enfrentam ainda muitas dificuldades no acesso à energia eléctrica.

No campo das infra-estruturas públicas, as promessas também abundam, escolhemos a que mais burburinho fez na altura. Em 2007, o Ministério Obras Públicas apresentou o “Cabinda Link”, um projecto rodoviário ambicioso que uniria Cabinda e o Zaire até 2011, “através de uma ponte em espécie de auto-estrada, que se prevê construir sobre o Rio Zaire, para facilitar a circulação de pessoas e mercadorias”, lê-se na ANGOP, em 2007. A estrutura teria um “tempo de utilidade previsto de 100 anos”, dizia o então ministro da tutela, e ajudaria “ao desenvolvimento socioeconómico de Angola e da República Democrática do Congo”.

Empregos e educação. Onde?

No seu programa de governo 2017-22, apresentado na campanha das eleições presidenciais que elegeriam João Lourenço, o MPLA prometeu “criar, no mínimo, 500 mil novos empregos” e reduzir “em um quinto” a taxa de desemprego que, naquela altura, era de 24%, de acordo com o programa.

Apesar de João Lourenço ter anunciado no ano passado que 470 mil do meio milhão de empregos prometidos já foram criados pelo governo, nem o MPLA nem o executivo conseguem efectivamente explicar que empregos são esses e quem foram os beneficiários.

Em Junho de 2022, Lourenço tentou justificar. “Durante a pandemia, várias empresas encerraram. Isso aumentou o índice de desemprego, mas, em contrapartida, surgiram outros postos de trabalho. Construímos unidades hospitalares que geraram vários postos de trabalho. No processo de combate à corrupção, houve a recuperação de activos, fecharam-se algumas empresas e abriram-se outras unidades industriais que também geraram mais postos de trabalho, como é o caso da indústria têxtil que conta com três pólos, em Luanda, Benguela e no Dondo”.

A explicação contraria os dados. Ao contrário do que o MPLA se propôs fazer no quinquénio 2017-2022, a taxa de desemprego em Angola aumentou consideravelmente desde então, pairando hoje quase nos 30%, segundo o Instituto Nacional de Estatística.

Se o emprego e a educação andam de mãos juntas, não será novidade que também o ensino ande pelas ruas da amargura. Apesar da Declaração de Incheon de 2017 demandar que os países da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral, entre os quais Angola, invistam, pelo menos 20% dos seus orçamentos gerais na educação, o nosso país tem sido incapaz de cumprir tal compromisso. O OGE deste ano, por exemplo, dedica somente 7,74%, ao sector, segundo dados do Ministério das Finanças.

A falta de professores, de qualidade no ensino e, acima de tudo, o número de crianças fora do sistema de ensino – 22%, segundo a UNICEF – evidenciam a tragédia que é este sector em Angola.

Poder local. E as autarquias?

Apesar de surgir já na Lei Constitucional de 1992, a institucionalização das autarquias é hoje uma das mais escrutinadas promessas políticas. Vista por muitos como o real “calcanhar de Aquiles” da actual governação, o debate em torno do poder local foi reaceso durante o primeiro mandato do presidente João Lourenço, entre 2017 a 2022 que, talvez por isso, se considere o “pai” das autarquias, como deixou claro numa entrevista em 2022 à Voz da América. "Quem teve a iniciativa de, pela primeira vez, falar das autarquias fui eu", garantiu o chefe de Estado, quando questionado sobre o porquê da não realização das autarquias até ao momento.

Noutra em Março deste ano, agora à EuroNews, Lourenço afirmou que a questão das autarquias não se trata de uma promessa eleitoral mas sim de “uma decisão”. “Nunca houve eleições autárquicas em Angola. Vai ser a primeira vez. Vão acontecer quando? Não sei, mas vão ter de acontecer, necessariamente”, reafirmou.

A confiança na institucionalização das autarquias parece estar-se a perder. Não para tão cedo, pelo menos. Para José Gomes Hata, membro fundador do “Movimento Jovens Pelas Autarquias”, a governação de João Lourenço reacendeu o debate das autarquias “não tanto com o fim de as realizar, mas sobretudo como questão de afirmação política”. “Depois das derrotas nas eleições de 2022, sobretudo na capital, não vejo um MPLA com predisposição para avançar para as autarquias”, lamenta.

A busca incessante pelos sonhos. #AcabaDeMeMatar e outros

Nesta busca pelos sonhos, várias têm sido as maneiras que os angolanos têm encontrado para protestar pela não concretização de promessas feitas.

As redes sociais, em particular o Facebook, têm sido palco de muitas destas demonstrações. Em 2018, a campanha #AcabaDeMeMatar viralizou-se. O protesto, que visava a publicação de imagens com objectos distintos, como blocos, comida ou garrafas por cima de pessoas, visava chamar a atenção das autoridades para a falta de políticas públicas que minimizassem as dificuldades sociais e económicas das populações.

Mas não ficou por aí.

Em Março desde ano, o activista Gangsta liderou o protesto “Fique em casa”, através das redes sociais. A iniciativa apelava a uma "reflexão sobre o estado do país" e teve considerável apoio da população, abrindo um precedente na forma com que se usa as redes sociais para a mobilização política e social.

Numa coluna para o Novo Jornal, a jurista e fundadora da revista Jovens da Banda, Mila Malavoloneke, disse que “numa Angola moderna, onde pouco ou nada nos surpreende mais, as redes sociais tornaram-se palco de cada nova forma de protesto e inquietação; são quase a única escapatória, sobretudo dos jovens, que nelas rogam, mesmo sem saber quais dos santos atenderão às suas súplicas.”

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