Há uma semana que um leve desconforto no abdómen incomoda Eliza. A senhora precisa de repousar, mamã. Anda muito ansiosa. As palavras da obstetra ecoam, enquanto acaricia o ventre saliente com preocupação.
Termina de dobrar as roupinhas do filho. Os dedos inchados, sem aliança, deslizam suavemente pela cabeceira arredondada do bercinho de madeira. Sente um aperto no peito. A visão fica turva e a cabeça dói. As unhas roídas e malcuidadas cravam na madeira envernizada, quando se segura para não cair.
Precisa de se sentar.
Antes de apagar a luz, vislumbra o seu reflexo no espelho. Veste apenas um vestido azul-claro que, dentro de algumas semanas, deixará de servir. Sorri. O menino dentro de si cambalhota.
Com dificuldade, arrasta os pés inchados até à sala, usando a parede como apoio. O som ecoa pela casa vazia. Senta-se na velha poltrona e ajeita as almofadas atrás das costas. O desconforto permanece. Torce o tronco para o lado esquerdo, alcançando o telemóvel que está em cima da mesinha de apoio.
É quase uma da manhã.
Há horas que o marido saiu para comprar os antiácidos. Hesita, antes de lhe ligar. Enquanto marca o número, Eliza apercebe-se que está mais preocupada com a falta dos medicamentos do que com a ausência do seu esposo. O telemóvel chama. Pergunta-se por que é que ainda estão juntos. Unitel, o número para o qual ligou— desliga. Falta de coragem. Coragem para assumirem que, desde o segundo aborto, tudo mudou.
Sente uma pressão mais intensa na cabeça e pontadas na coluna. Com dificuldade, iça-se da poltrona, largando o telemóvel no assento.
A barriga arredondada chega à janela antes dela. Fecha os olhos e respira profundamente. A brisa cacimbal arrepia-lhe os pêlos da nuca. A cidade está serena. Recorda-se da sua primeira noite naquele singelo nono andar, nos Combatentes. Dormiram a semana toda num colchão de solteiro, abraçadinhos... Agora, mal se recorda da última vez que trocou carícias com o marido. Depois do último aborto, deixaram de olhar um para o outro. É um milagre estar grávida novamente.
São quase sete meses. As lágrimas escapam-lhe dos olhos marejados. Nunca chegara tão longe. Apesar de, às vezes, e envergonha-se de o admitir, a esperança e a ansiedade de ver o menino nascer parecem ser piores do que a mágoa de o perder.
Faz uma careta quando as pontadas na coluna se intensificam. Não deve ficar tanto tempo de pé. Caminha de volta à poltrona. Um forte golpe no estômago inebria-lhe os sentidos. Eliza cai. Geme, ao sentir o impacto do ventre com o chão. Prende a respiração, receando o pior. Os batimentos cardíacos aceleram, não há como ter a certeza de que o menino está bem. Mas precisa acreditar que, desta vez, este bebé, não a deixará.
Com um nó na garganta, gatinha até à poltrona. Uma segunda onda de dor fá-la vacilar e sente o calor do líquido que lhe escorre pelas coxas. O suor acumula-se-lhe na testa. A respiração entrecortada custa a estabilizar. O medo, já conhecido, toma-lhe conta do corpo.
E com ele, culpa.
A mão trémula alcança as almofadas, puxando-as para baixo. O telemóvel cai.
Sente outro golpe na lombar que se irradia pelo abdómen abaixo. Inspira pelo nariz e solta o ar pela boca, uma e outra vez. O corpo convulsiona em pequenos espasmos. As almofadas comprimidas entre as suas costas e a poltrona.
O prelúdio de uma nova contracção tira-lhe o fôlego.
– Por favor... – Sussurra, com os dentes cerrados. – Não estou pronta. Outra vez não...
Dobra os joelhos e puxa o vestido para a cintura. A mancha avermelhada que tinge o tecido azul-claro, confirma o que já temia. Engole o choro.
Dobra os joelhos e puxa o vestido para a cintura. Testemunha a mancha avermelhada que tinge o tecido azul-claro. É a confirmação do que já temia. Engole o choro.
O espaço à sua volta, comprime-se. Sente-se a sucumbir. Cogita fechar os olhos e deixar-se ir... Aquela é uma batalha demasiado dura para enfrentar sozinha. As dores são agora mais rítmicas. Os seus outros bebés materializam-se à sua frente. Ouve o seu choro.
Mas algo primitivo desperta dentro de si. Tem de o salvar.
Um arrepio percorre-lhe a espinha. Inspira profundamente como se ganhando coragem. Prende a respiração e empurra com todas as suas forças. Novamente. Inspira fundo e empurra o máximo que pode. Sente o menino a sair de dentro de si. Solta um grito visceral.
Olha para ele. Ali está, o seu pequeno milagre… À sua volta, a poça de sangue continua a ganhar forma. Tão sereno, parece que dorme ainda dentro do saco amniótico.
As mãos tremem ao tocá-lo. O corpo convulsiona em mil e um soluços. Um choroso perdão escapa-lhe pelos lábios.
Pega no pequeno cadáver e encosta-o ao peito. Está exausta. Eliza fecha os olhos e abraça o filho. Deixando-se ir. Antes da escuridão, sorri. Pois sabe, que, finalmente, poderá estar com os seus bebés.