A erva mirava o gato e o gato a erva. Difícil distinguir com clareza o hipnotismo da sedução. Às vezes os gatos comem erva e dizem os sabidos que isto é sinal de doença intestinal. Que eu saiba, nunca uma erva comeu um gato. É princípio de que a erva é um ser sempre saudável. Por vezes, alimenta-se do gato-estrume, principalmente quando a erva já não pode salvar a pele ao gato, ficando o bicho com o desígnio final de nutrir a terra.
Bem, mas em boa verdade, não era a erva que o gato mirava, mas o passarinho cantante e distraído mais à frente. Os gatos domésticos, para além do instinto conhecido, tinham aprendido a comer pássaros pela televisão. Quer dizer que estávamos perante a natureza viva, actualizada e adulterada pela tecnologia. Logicamente, o pássaro estava em vantagem.
Isso durou um par de horas. Paciente a erva, persistente o gato, ciente o pássaro, cada um no seu ente que Deus lhes deu, interagiam, entre si e connosco. Nenhum de nós previa que uma tragédia ia acontecer. Porém, antes, um evento: começou a chover. O gato escaldou-se, o pássaro esfumou-se, a erva pariu bolhas de luz e, de trovão, tudo se apagou, excepto o marulhar das crianças que tomavam banho de chuva, ritual sagrado numa ilha onde não chove.
Dura sempre pouco a romaria da chuva nesta ilha. Vem e vai com o vento, às vezes é bocejo de nuvem a caminho do céu perdido, outras um engano da estação. Com o espreitar do Sol, surgiu seco e arfante a fugir um gato com um pássaro na boca.
As crianças nem piaram. Nós, os mais velhos, todos no século passado nascidos e sidos, levámos tempo para perceber que, entretanto, no mesmo lugar estavam, ou para lá voltaram, a erva seca, o gato focado e o pássaro em cima da pedrinha, enquanto para dentro de casa tinha esguiado o gato com o pássaro na boca. E nós, admirados.
Quais são os cenários possíveis, ou melhor, o que é que aconteceu, ou estava a acontecer?, perguntámos. Olhámos para a cena: a erva afastara-se do gato, jazia inclinada para a direita, o gato avançara e o pássaro saltitava de erva em erva, tiritando as aletas, trepidando a cabeça, abanando o rabo. Era claro que sabiam da existência uns dos outros. A erva sentia o bafo quente do nariz frio do gato, o pássaro fingia olhar para a frente com os mesmos olhos laterais a piscar o gato, o gato estava alinhado com o ângulo morto da visão do pássaro. Ou seja, a erva podia ser ferida por uma fúria repentina do gato, antes que o pássaro trincasse o broto que se desenrolava à procura da água do orvalho; o gato podia perder a comida num segundo, bastava um passo em falso; o pássaro podia perder a vida num miau, bastava uma distracção pelo remexer da erva. Nós também ficámos atentíssimos, digamos que abduzidos pela perícia de cada um daqueles entes.
As crianças, entretanto, destroçadas com o fim da chuva e a secura do algeroz, andavam a correr atrás do gato de pássaro na boca. Gritaram, de paus e pedras apontados, até que encurralaram o gato e ordenaram-lhe “Larga-l, larga-l”.
Nós, de um lado, tínhamos a imagem, do outro, o som, mas os dois não se combinavam porque, do nosso lado da tensão entre a trindade em riste (a erva, o gato e o pássaro), pairava um silêncio meticuloso; do outro, ondas crianças, pelo som, pudemos imaginar os olhos vidrados do passarinho mordido, se morto não estivesse. Mas lembrei-me de que não tínhamos visto penas na boca do felino que passara. Porém, gato encurralado tampouco existe. “Cuidado, cuidado” gritava a menina do grupo. O gato devia estar na posição de ataque, as orelhas retesadas, o corpo dúbio sobre as patas dianteiras, a coxa em mola engatada por um fio de cabelo, os bigodes antenados e a boca fechada. Não o víamos, apenas ouvíamos. De repente, soou um ronronar chiado, um grrrr tigrês, prévios de um arranhar em potência, de uma dentada latente. Então, uma criança começou a chorar. Durou pouco, foi choro de medo. As outras desataram-se a rir acompanhadas por uma cacofonia de pedras e paus contra a parede. Nada disso assustou os intervenientes da cena que nós estávamos a presenciar: a erva erecta de susto e de alerta, o passarinho excitadíssimo de olhos rápidos na órbita helicoidal, as asas levemente sobre o corpo, a menos de um milímetro, ou um segundo, de levantar o voo para escapar às garras do gato já ao pé do penedo.
Pela esquina, as crianças apareceram com o passarinho de coração quente e arrítmico, as penas molhadas, os olhos parados mas vivos, são e salvo na cova das mãos da menina agora sorridente, (“sorrilábia”, melhor, porque de leite os dentes caíram). Observaram-nos, satisfeitos, e viram-nos pasmos a contemplar a caça no jardim:
- São hologramas, tios -
disseram para nós.
Perceberam a nossa ignorância, o nosso atraso. Custava-lhes entender que tínhamos passado duas horas a olhar para uma imagem projectada, em que uma única ervinha fazia de pêndulo retardado, um gato ia até ao pé do penedo e um passarinho irrequieto não saía do lugar, contanto de embelezarem um jardim ressequido algures nas paisagens da nossa Ilha.