Movimento

Por um teatro que incendeie o futuro

Daniela Vieitas
foto/ilustração:

O que está a acontecer neste maldito mundo? Eu sou um homem. Tenho olhos para ver

in “Sizwe Banzi morreu”, de Athol Fugard, John Kani e Winston Ntshona

Quando o Cinema surgiu, com a sua beleza e possibilidades, muitas foram as vozes que predisseram o fim do Teatro. No entanto, este permaneceu. Porquê?

O Teatro é uma arte despojada. Na sua essência, precisa apenas do actor ou da actriz e do público. E o actor precisa somente do seu corpo e a sua voz. Esta frugalidade permite que o Teatro aconteça em qualquer lugar, desde que haja quem o queira fazer.

O Teatro é arte de presença. Mesmo que se possa filmar, o teatro joga-se no frente a frente, entre actores e espectadores. Implica a sua irrepetibilidade, o acesso apenas a quem se fez presente. É uma Arte que exige fruição ao vivo, habitualmente colectiva, e que oferece a cada pessoa uma experiência pessoal. Somos seres colectivos e de experiências sensoriais, o Teatro responde ao que somos.

O Teatro revela o oculto. Reúne em si o sagrado e o profano, o visível e o invisível. É um estado de delicadeza permanente, entre o que se oferece e o que se esconde. O Teatro pode revelar-nos o oculto (até o de nós próprios) porque se permite a subtileza de sentidos em camadas, entre olhares, palavras e gestos. É relevante quando nos questiona sobre o nosso posicionamento no mundo, tornando o universal em particular e o particular em universal

Mas, se o Teatro permaneceu até aos nossos dias, que futuro lhe espera?

O segredo maior é o Futuro. Podemos tentar adivinhá-lo, profetizá-lo ou analisar tendências, e certamente que o sonhamos. Tudo são exercícios de efabulação, porque a História – tanto individual como colectiva - mostra-nos que os acontecimentos previsíveis são na mesma proporção dos imprevisíveis. O futuro deseja-se e receia-se, queremo-lo já hoje, queremo-lo para depois de amanhã.

Dependendo de quem o olha, o Futuro pode ser utópico ou distópico, oscilantes que somos entre a esperança e o pessimismo. O Teatro terá lugar na utopia? E no seu contrário, se o que nos espera for um futuro distópico, o Teatro terá voz?

Na utopia, o futuro apresenta-se sem guerra, sem fome, sem fronteiras, o Ser mais importante que o Ter. A humanidade, realizada em cada pessoa, terá espaço e tempo para ser o melhor de si própria. É o sonho mais sonhado e nunca, até hoje, concretizado. O Teatro permite discutir esta e outras utopias, ajuda a não esquecer, despoleta o pensamento pela experiência de fazer ou de assistir a um espectáculo e actualiza, em cada dia, as nossas lutas pelos mais humanos Direitos. Na utopia, teremos Teatro.

Na distopia, o futuro apresenta-se cinzento. O maior negócio será o do medo, com biliões e biliões de dólares gerados e investidos em separar pessoas, em alimentar ódios e em ensinar as novas gerações que o Outro, um qualquer Outro, é uma ameaça. O Teatro, de tão despojado, será a arte que, mesmo proibida, será sempre possível. Quando não nos restar nada, teremos ainda o corpo e a voz. Quando nos tirarem tudo, ainda assim, o Teatro, com a sua subtileza de sentidos e a possibilidade de acontecer em total ausência de tecnologia, pode ser a pequena luz de humanidade entre os escombros. Na distopia, também teremos Teatro.

O Teatro, porque enraizado no passado primordial, estará presente em qualquer futuro. Mas talvez que, em qualquer futuro, não caiba um qualquer teatro. No futuro não deveria haver lugar para um teatro sem pensamento, de palcos pejados de personagens estereotipadas, apresentadas sem profundidade, como o bêbado que cai, a zungueira que grita, a rapariga que (se) engravida ou jovem bisneiro. Rimos muito a ver espectáculos assim, mas na rua continuamos a não ver o sofrimento da zungueira nem a dignidade dos jovens que fazem tudo para mudar o seu destino. É um teatro que nos abstrai, adormece. O Teatro do Futuro, e o do Presente, deve incendiar-nos.

Mas para que esse fogo seja possível, é importante que cada actor, dramaturgo ou encenador, não se perca de si próprio. Peter Brook afirmava que os actores ocidentais têm qualidades para explorar a raiva, a violência política e sexual e a introspecção psicológica e que os actores orientais apresentam qualidades inexcedíveis de ritualização do gesto e de tornar sagrado cada momento da representação. Mas que não é fácil, tanto para actores ocidentais como orientais, encontrar imagens de um mundo invisível, como o é para actores africanos.

Não sei se África ainda é o continente que detém a capacidade de nos ligar, enquanto humanidade, ao mundo poderoso do que é invisível – aquele em que todos os tempos estão num tempo só e em que reconhecemos o nosso vínculo primordial à Terra. Mas que o Futuro, quer utópico, quer distópico, e o Teatro, precisam deste elo, não tenho dúvida. Que seja, então, o invisível a incendiar o Futuro.

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